dom
- Marcelo Nery
- 16 de set.
- 2 min de leitura

Júlia acordou ouvindo pensamentos.
Percebeu no banho do marido: entre um refrão desafinado e a espuma, ele soltou mentalmente "mas que mulher chata".
— O que você disse? — ela, assustada.
— Eu não disse nada. Eu tô cantando! — ele, irritado.
Ela cogitou estar ficando doida. Até ouvir a filha desejar "passar a tarde transando com o Carlinhos até a buceta inchar".
— Vou na casa do Carlinhos terminar o trabalho de Geografia, mãe — respondeu, doce como freira.
Júlia engoliu o susto. Não podia contar a ninguém. Um segredo desses virava maldição.
No trabalho, foi bombardeada:
"Roupa ridícula" — Amanda, a amiga fiel.
"Te chupava inteira" — o porteiro.
"Essa puta roubou meu projeto" — Roberto, o colega modelo e gentil.
— Ótimo texto, Júlia! — disse Roberto quando ela entregou os arquivos.
Ela devolveu um sorriso de meio segundo.
No almoço, Amanda pensou: "Esse tanto de arroz? Já não tá gorda?". Júlia tirou metade do prato. Mas não conseguiu comer. Cada mente no refeitório era rádio ligado ao mesmo tempo. Ficou tonta.
— Termina o relatório hoje? — perguntou Roberto.
— Já está pronto.
"É uma puta mesmo, sempre eficiente."
— Pois é. — ela levantou os ombros. — Sou eficiente mesmo.
O garfo dele caiu. Ela... como ela... não, era só sua impressão.
Júlia começou a usar o dom como lupa.
Na academia, o professor bonitão camarada pensava "essa barriga de mãe nunca some". O rapaz da recepção, ao contrário: "mulher elegante, que sorte o marido dela tem". Mas, voltando para casa e paralisada no trânsito, um pensamento a atravessou: "E se também lessem o que eu penso?"
Decidiu não pensar.
Nunca mais.
E aí a vida desandou.
Esvaziava a cabeça, queimava arroz, trocava sal por bicarbonato, intoxicou o gato com detergente. A casa virou zona, perdeu emprego, e quando tudo não poderia parecer pior, o marido pulou fora. Para sobreviver, assustada por pensar em pensar, vivia em branco.
Até bater o carro.
No hospital, respondia sem nexo.
Aproveitando o momento que tinha de ficar em repouso na maca, acabou se permitindo lembrar da época em que podia pensar livremente... e se arrependeu de muitas coisas.
Lembrou-se do personal da academia, "corpo bonito que só serve pra cama; burro como porta."
A Amanda "incompetente, só sobe se abrir as pernas."
Roberto? "Pau pequeno e bafo de gambá."
O porteiro, "tarado."
O marido e a filha? "Nunca devia ter casado."
Só do rapaz da recepção, ela não pensava nada. E era o único que a via com gentileza.







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